Os pés surgiam naquela calçada imunda, pisando as poças que se juntavam no chão, sujando a calça de linho preta e o sapato impecavelmente lustroso. A ponta da bengala conduzia os pés, despreocupadamente. Dos lábios finos um assovio em que cantarolava uma das canções de seu autor preferido. 9ª sinfonia de Beethoven em Lá maior... Os olhos num tom de roxo eram sua peculiaridade. Ninguém saberia dizer se tratava de uma lente ou alguma anomalia de nascença... O importante é que era roxo comprovadamente roxo. Às vezes girava a bengala no ar enquanto caminhava. O corpo esguio coberto por uma casaca de veludo carmim que quase arrastava no chão e contrastava com a camisa preta de botões. Andava sem pressa. Edward nunca tinha pressa... Para que pressa se a morte...Aaahh! A doce morte do ankh está sempre esperando na esquina mais próxima quando a sua hora chega e não tem... Meus amigos acreditem... Não tem como escapar de sua visita.Parava diante do Pub... Um respirar fundo... E o descansar dos ombros... Os olhos roxos erguiam-se da porta para o nome que brilhava em néon naquela noite em New Orleans. Abriu a porta, o som do blues inundava todo o ambiente... O ruído dos copos trincando na mesa, as garrafas de cerveja sendo abertas o murmurar das conversas... Era recebido na porta pelo hoster que lhe pedia a cartola e a bengala... Deixou os olhos roxos pousarem nos azuis em sua frente e bateu com a bengala levemente na mão que lhe havia sido estendida.
- Já tentou retirar parte de um homem? Pede para que seus clientes deixem a mão... Ou o pé?O rapaz o olhou confuso, esfregando os dedos na palma da mão que havia recebido a bengala em punição.
- Na... Não senhor...Ele arqueava a sobrancelha e esboçava um sorriso doce... Convidativo... Enquanto retirava a mão do bolso levemente passando pelos cabelos loiros e lisos do rapaz de colete negro e avental.
- Então minha criança...Sorria largamente, como sorriem as avós que nos contam historinhas.– Como pode querer pegar parte de mim para guardar, hm? A bengala e a cartola fazem parte de um homem clássico...
Piscava levemente enquanto seguia os passos para entrar no bar. O rapaz não lhe disse mais nada... Apenas passou a mão pelos cabelos, sentindo cair pequeninos grãos de areia. O que era aquilo? Mais um yankee louco provavelmente... Meneava a cabeça enquanto voltava para a porta do Pub para receber outros clientes, que não lhe dariam bengaladas nas mãos. Edward entrava aspirando aquele cheiro. Havia algum tempo que não vinha a aquele lugar... A bengala tocava o chão de madeira de lado, conduzindo-o para o balcão. Sentava, erguendo a parte de trás da casaca, descansando a bengala de lado e pousando as mãos, vestidas numa luva de pelica lilás sobre o balcão.
- Boa noite Dr... - O Barman adiantava-se, com um menear de cabeça e a limpar aquele balcão lustroso de marfim. – O que vai ser?
Edward sorriu largamente, era bom ser lembrado, melhor ainda quando nunca era esquecido. E existiam pessoas que tinham este dom. O de nunca esquecer. Nunca deixar de acreditar. Conhecia aquele barman desde que ele era uma criança sapeca que a mãe tinha de buscar no quintal de casa para dormir. E não foram poucas as vezes que o encontrava dormindo sobre o monte de feno do estábulo. E ele ainda lembrava...
- Olá Steve... Como vai? - Os olhos roxos prendiam-se nos do rapaz, como se pudessem adentrar pela alma naquele momento.– O de sempre, eu creio... Absinto... Mas não desses recém industrializados que tiraram todo o encanto da bebida... Aquele da adega... Guardado a sete chaves para clientes especiais.
Steve sorriu, lembrava-se do Dr. Como não lembrar? Dr. Von Cassidy e seus gostos exuberantes, a começar pelo vestir. Meneou a cabeça afirmativamente e entrou pela portinhola que ficava atrás da estante de bebidas voltando alguns minutos depois, trazendo a garrafa de absinto produzida a alguns séculos atrás, guardada e conservada a sete chaves, e a taça que se fazia jus a bebida. Comprida com serpentes de metal enroscadas por ela, desde a sua base até o corpo de cristal puro, como um daqueles itens medievais que se vê em filmes do Pendragon. E enchia a taça do líquido verde. Poderia jurar que por alguns segundos ali diante daquele homem estaria vendo no fundo da taça pequenas fadinhas luminosas a dançar no fundo da bebida. Rodeando umas as outras e ele abaixava um pouco o rosto para ver melhor... Talvez fosse o sono... Trabalho demais... E a sensação de que havia areia em seus olhos, obrigando as pálpebras a fecharem... Coçou os olhos para focar a visão e as fadinhas pareciam desaparecer, Steve sacudiu levemente a cabeça, levantando o rosto, tendo seus olhos castanhos a encontrar-se com os roxos de Edward que o observava num sorrir misterioso.
- Hã... Er...Coçou a nuca levemente, obrigando-se a sair daquele estado de letargia.– Me desculpe Dr... Eu... Eu... Pensei... Que... Ahn... Tinha visto...
- Restos de rolha...Concluiu o pensamento como se pudesse ler o que o jovem tentava dizer... A desculpa que tentava arrumar. Sabia que não era isso que ele vira, ou ao menos achava ver, mas um psiquiatra aprendia a analisar um paciente... E todas as pessoas se tornavam pacientes em potencial.– Eu entendo Steve...Pegava a taça com seu precioso líquido e levava aos finos lábios. Fechando os olhos para aproveitar o sabor daquela iguaria.
- Ahnnn...Sorriu sem jeito.– Sim... Sim... É isso Dr...
Nunca soube por que a presença daquele homem era tão convidativa... Era tão reconfortante e não lhe dava a vontade de ir embora, na verdade várias vezes ficara tentado em deixar o balcão e ir atrás do conceituado psiquiatra Edward Von Cassidy e suas excentricidades. Deveria ser algum recurso da psicanálise. Edward percebia... Sempre percebera a facilidade que algumas pessoas tinham de se entregar a ele e a suas vontades e sorriu... Girando no banco para olhar o salão do bar. Sentindo o gosto de ervas da fada verde lhe tomar o palato. Naquele dia ele não brincaria com o pobre Steve, ou qualquer um que se aproximasse. Estava esperando pessoas... Pessoas que não via há muito tempo. Pessoas cujo reencontro era inerente à vontade dos deuses.